Quem acompanha caminhão sabe: promessa de “emissão zero” costuma esbarrar na vida real do frete — peso bruto total, topografia, prazo e planilha. Pois a GWM resolveu encarar o desafio com o primeiro caminhão a hidrogênio da GWM Hydrogen powered by FTXT. Uma unidade já está em solo brasileiro e inicia uma bateria (literalmente) de inspeções e testes em São Paulo. Em todos os continentes, o maior desafio tem sido a planilha financeira.
O veículo desembarcou no Porto de Santos e seguiu para a fábrica de Iracemápolis (SP), onde passa por inspeções e validações antes de rodar em vias públicas. O foco inicial é a integridade e o desempenho do sistema de alta tensão — afinal, caminhão a célula é, antes de mais nada, um caminhão elétrico que carrega uma “usina” a hidrogênio a bordo. Só depois vêm os ensaios da própria célula a combustível. Como subproduto do processo eletroquímico, sai apenas água.
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Tecnicamente, a ficha é interessante: bateria de 105 kWh e cilindros para 40 kg de hidrogênio, com regeneração nas frenagens — útil em descidas de serra e operação urbana pesada.
A estreia ao público está marcada para 15 de agosto, durante a inauguração da fábrica da GWM em Iracemápolis. Mais do que inaugurar galpão, a marca usa o palco para apresentar a sua visão de eletromobilidade pesada “à brasileira”.
“É o início da construção de um ecossistema de hidrogênio no Brasil, com parcerias estratégicas e soluções adaptadas à nossa realidade”, diz Davi Lopes, Head da GWM Hydrogen-FTXT Brasil.
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Testes: do laboratório à estrada
Em agosto, o caminhão passa por inspeção técnica. Em setembro, começam os primeiros testes com o sistema de hidrogênio, em parceria com universidades brasileiras — destaque para a USP, que já tem infraestrutura para abastecimento a partir do etanol, rota de baixo carbono com DNA nacional.
Antes de ganhar rua, haverá ensaios de suspensão, desempenho e segurança em pistas de prova, evoluindo de operação sem carga para condições reais. O objetivo é medir, com dados brasileiros, como temperatura, altitude e pavimento afetam a eficiência. É o tipo de lição que não se copia de outro país — se mede.
Na China, “parentes próximos” desse caminhão já rodam em operações reais. Na imprensa chinesa, há notícias sobre o lançamento de lotes de caminhões a hidrogênio para uso específico. Por exemplo, um lote de 100 caminhões pesados foi lançado em Tianjin e outro projeto com 500 caminhões basculantes a hidrogênio está em operação em Guangzhou.
Trazer a plataforma para cá permite testar em topografias e climas diferentes e, principalmente, ajustar a aplicação para o nosso ciclo de transporte.

Por que hidrogênio faz sentido (e onde ainda dói)
Para o operador, três promessas chamam atenção:
- Autonomia e reabastecimento rápido de um elétrico sem o “peso morto” de baterias gigantes;
- Manutenção típica de trem de força elétrico (menos peças móveis), com célula a combustível trabalhando como “gerador a bordo”;
- Emissão zero do tanque à roda — um ponto cada vez mais cobrado por embarcadores e cadeias globais.
O calcanhar de Aquiles continua sendo a infraestrutura de abastecimento e os custos do caminhão e do hidrogênio. A boa notícia: o Brasil tem uma carta na manga, etanol abundante e pesquisa local para convertê-lo em hidrogênio de baixo carbono — um atalho pragmático para viabilizar pilotos logísticos enquanto as rotas “verdes” (eletrólise) escalam. Sobre esse ponto, a própria GWM organiza a agenda de testes para avaliar diferentes fontes de H₂ (eletrolítico e reforma do etanol) e, depois, fechar conta econômico-financeira de viabilidade.
Quem está junto: governo, academia e pista
Nada disso caminha sozinho. O projeto nasce de um MoU com o Governo de São Paulo (2023) e mapeamento de cinco projetos de infraestrutura em 2024, que destravaram a fase de testes. Em paralelo, a GWM firmou acordo com o Governo de Minas Gerais e a Unifei (nov/2024) para desenvolver caminhões a hidrogênio verde, com fornecimento pela universidade e criação de infraestrutura no estado. É o tripé indústria–academia–governo funcionando como deve.
Esses testes brasileiros se encaixam no Programa MOVER, do Governo Federal, e no plano da companhia de neutralidade de carbono até 2045. Tradução: não é um demo de salão; é P&D com meta e régua pública.
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E lá fora, como está? Por que projetos naufragaram nos EUA e na Europa
Nos últimos anos, caminhões movidos a hidrogênio foram apresentados como a solução definitiva para um transporte de carga de longa distância mais limpo, combinando autonomia elevada e zero emissões na operação. Mas, na prática, diversas iniciativas bilionárias nos Estados Unidos e na Europa encontraram obstáculos técnicos, econômicos e estruturais que levaram muitas ao fracasso.
Promessas não cumpridas e empresas à deriva

Entre os casos mais emblemáticos está a norte-americana Nikola, que chegou a ser considerada a “Tesla dos caminhões a hidrogênio”. A empresa prometia revolucionar o setor, mas em 2025 entrou com pedido de falência, após enfrentar problemas de credibilidade, atrasos de produção e falta de infraestrutura para abastecimento. Outra vítima foi a Hyzon Motors, que anunciou em dezembro de 2024 a dissolução de suas operações devido a prejuízos contínuos. A First Mode, especializada em veículos pesados para mineração, também encerrou atividades no mesmo ano.
Infraestrutura insuficiente e custos proibitivos
O combustível que deveria ser a vantagem competitiva do hidrogênio acabou se tornando um gargalo. Na Califórnia, mais da metade das estações de abastecimento estavam inoperantes em 2023. A Shell, uma das gigantes do setor, chegou a fechar todas as suas estações de hidrogênio no estado. O preço do abastecimento também assustou: chegou a ultrapassar US$ 30 por quilograma, valor que inviabiliza a operação frente a caminhões elétricos a bateria.
Na Europa, onde desde 2008 foram investidos cerca de equivalentes a R$ 6,3 bilhões em programas de mobilidade a hidrogênio, o cenário não é muito diferente. A confiabilidade dos veículos e das estações ficou abaixo do esperado, e o custo do hidrogênio verde não caiu no ritmo necessário. Estudos recentes indicam que caminhões a célula de combustível demandam até quatro vezes mais energia renovável para operar do que modelos elétricos equivalentes.
Problemas de segurança e operação
Além da dificuldade de abastecimento, houve incidentes que abalaram a confiança na tecnologia. Vazamentos de hidrogênio — alguns superiores a 35% — foram registrados em estações nos EUA, e um caso grave na Alemanha obrigou a evacuação de uma área após o escape de gás em um caminhão da Linde.
Mudança de rota das montadoras
O impacto desses problemas levou grandes fabricantes a rever seus planos. Em 2025, a Stellantis, dona de marcas como Peugeot, Citroën e Vauxhall, anunciou o fim de seus programas de veículos a hidrogênio, citando altos custos, falta de infraestrutura e baixa demanda. Paralelamente, França e Alemanha passaram a priorizar caminhões 100% elétricos, considerados mais eficientes e viáveis economicamente.
Lição aprendida
Especialistas apontam que o fracasso de parte desses projetos não significa o fim definitivo do hidrogênio no transporte pesado, mas expõe a necessidade de um redesenho da estratégia. A tecnologia ainda pode ter espaço em nichos específicos, como rotas muito longas ou aplicações industriais pesadas, mas dificilmente alcançará a escala imaginada sem investimentos maciços em infraestrutura, queda expressiva no custo do combustível e soluções para os problemas de confiabilidade.
O veredito (provisório), no estilo “pé no para-choque”
Hidrogênio não é bala de prata, mas pode ser a bala certa para missões pesadas onde o BEV puro sofre com massa de baterias e tempo de recarga. A estratégia da GWM — começar pela engenharia, casar com a universidade que domina H₂ do etanol e só então discutir business case — mostra maturidade rara em projetos de vitrine.
Se os números de campo fecharem, o operador ganha uma alternativa elétrica com autonomia e reabastecimento rápido, e o Brasil avança com uma rota de baixo carbono condizente com a sua realidade. Até lá, segue o que a marca promete desde o release: testar com método, no nosso asfalto e com energia feita aqui.


