Quando o ministro dos Transportes, Renan Filho, propôs eliminar a obrigatoriedade das aulas em autoescolas, muita gente se apressou em defender ou atacar a medida. Mas a verdade é que a discussão vai muito além de “ter ou não ter” aulas em CFCs: trata-se de rever um sistema que ensina candidatos a tirar nota na prova, mas não a sobreviver no trânsito.
A discussão sobre a obrigatoriedade das autoescolas, no entanto, é apenas parte de um problema maior: o modelo de formação de condutores no Brasil. Falo com a experiência de quem já obteve três categorias de CNH e, na prática, apenas aprendeu nas autoescolas apenas o necessário para ser aprovado no exame do Detran.
Ao longo dos anos, participei de cursos de direção segura que vão muito além do que é ensinado em centros de formação de condutores (CFCs). Entre eles, um treinamento com a equipe da Audi, um curso avançado promovido pela Mercedes-Benz com instrutores vindos da Alemanha — realizado no Campo de Provas da Goodyear, em Americana (SP) —, além de um curso de altíssimo nível ministrado pela TRX Triumph no Campo de Provas da Pirelli. Também concluí uma formação de excelência em Gestão de Segurança no Transporte, oferecida pela Fundação Adolpho Bósio de Educação no Transporte (Fabet), que se assemelha a uma pós-graduação, e o de ISO 39001, oferecido pela Volvo.
Essas experiências mostram uma dura realidade: as autoescolas, em sua forma atual e desde a minha primeira CNH nos anos 1990, têm como objetivo principal preparar candidatos para passar na prova do Detran, e não formar motoristas e motociclistas realmente capacitados para enfrentar o trânsito brasileiro.
Ensinar a passar no exame não é o mesmo que ensinar a dirigir
Embora ensinem as normas exigidas pelo exame, as autoescolas não abordam a maior parte das técnicas de segurança necessárias no dia a dia. No curso da TRX Triumph, por exemplo, aprendi manobras como o contraesterço e técnicas de frenagem de emergência de 100 km/h a 0 km/h — habilidades que podem salvar vidas, mas que não são ensinadas no processo tradicional de habilitação.
Na prática, vivenciei três diferentes autoescolas. Em todas, o aprendizado se limitou ao que seria cobrado no exame. Em São Paulo, um motociclista para sobreviver precisa saber atravessar a Marginal Tietê inúmeras vezes, mas a prova é feita em um estacionamento do Parque Ibirapuera. Um exemplo ainda mais crítico: para as categorias profissionais (C, D e E), destinada a motoristas de ônibus e caminhões, a avaliação consiste em dar uma volta em um quarteirão de bairro tranquilo na Zona Sul. É evidente que isso não prepara o profissional para enfrentar a rotina real de tráfego intenso, manobras complexas e situações de risco. O resultado? Motoristas e motociclistas “legalmente habilitados”, mas pouco preparados — e muitos só adquirem experiência na dor, quando sobrevivem.
E se aviões fossem habilitados como carros?
A proposta de acabar com a obrigatoriedade das autoescolas levanta uma reflexão ainda mais profunda: como seria se os pilotos de avião fossem “habilitados” pelo mesmo sistema que forma motoristas no Brasil? Quantos aviões ainda estariam voando?
Hora de repensar todo o modelo
Mais do que flexibilizar ou manter a obrigatoriedade das autoescolas, é urgente repensar todo o sistema de aprendizado e habilitação. É preciso avaliar qual deve ser, de fato, o papel das autoescolas nesse processo e como formar condutores que não apenas consigam aprovação em um exame, mas que tenham preparo real para enfrentar o trânsito brasileiro — um dos mais violentos do mundo.


