Apesar de 85% da frota flex, apenas 30% dos motoristas abastecem com combustível limpo e nacional. Anfavea afirma que uso integral colocaria Brasil na liderança mundial da descarbonização, mas 70% dos donos de carros flex ignoram isso
O Brasil vive um paradoxo energético e ambiental. Embora 85% da frota de automóveis leves seja composta por veículos flex — aptos a rodar tanto com etanol quanto com gasolina —, apenas cerca de 30% dos proprietários optam pelo combustível renovável. O restante abastece majoritariamente com gasolina, mantendo a dependência externa de petróleo e derivados e abrindo mão de ganhos ambientais e econômicos consideráveis.
O tema ganhou destaque no painel “Bioenergias e o futuro da mobilidade sustentável”, realizado na FenaBio durante a 31ª edição da Fenasucro & Agrocana, em Sertãozinho (SP), que reuniu especialistas para debater os caminhos da mobilidade de baixo carbono. Participaram Renato Romio, chefe da divisão de motores e veículos do Instituto Mauá de Tecnologia, e Henry Joseph Junior, diretor técnico da Anfavea.
Potencial desperdiçado e liderança possível
Henry apresentou um estudo da entidade projetando a descarbonização do transporte brasileiro até 2040. Segundo ele, mesmo com a eletrificação gradual e maior uso de biodiesel e etanol, o cenário mais provável ainda indica um aumento de 6% nas emissões de CO₂, devido à expansão da frota de 45 para 71 milhões de veículos.
Mas há uma solução de efeito imediato: se toda a frota flex passasse a utilizar 100% de etanol hoje, o Brasil alcançaria a maior descarbonização do setor de transporte do mundo, sem precisar colocar um único carro elétrico adicional nas ruas.
“O trabalho mostra claramente que não é só com tecnologia veicular que se consegue reduzir as emissões. Precisamos do uso do biocombustível, e é com ele que conseguimos os resultados mais expressivos”, ressaltou Henry.
Frotas corporativas
Diferentemente dos usuários pessoas físicas, há frotistas no caminho da sustentabilidade para acelerar os créditos da agenda ESG. Esses adotaram o etanol como combustível mandatório para suas frotas com veículos flex.
Entre as empresas que já tornaram o etanol obrigatório para suas frotas, destacam-se:
- Atlas Schindler: A empresa de elevadores, como parte de sua iniciativa net-zero, fez a transição de 100% de sua frota própria de 969 veículos para o abastecimento exclusivo com etanol. A medida é monitorada para medir a redução de emissões de CO2.
- Nestlé: A gigante de alimentos abastece somente com etanol a frota com mais de 1.700 veículos de sua força de vendas e gestão, como parte de sua jornada por uma frota mais sustentável e alinhada a compromissos globais de impacto ambiental neutro.
- Ambipar: A empresa de gestão ambiental abastece sua frota corporativa com o “Ambiálcool”, um etanol produzido a partir de resíduos de alimentos, destacando-se pela economia circular e ganhando reconhecimento internacional.
- Supergasbras: A empresa de gás também está ampliando sua frota sustentável e tornou mandatório o uso de etanol em seus veículos leves, como parte de sua estratégia de transição energética.
Além dessas, outras empresas demonstram forte compromisso com biocombustíveis em suas frotas:
- Stellantis: A montadora é pioneira no Brasil ao abastecer os veículos flex de marcas como Jeep e Fiat que saem da linha de montagem com 100% de etanol. A iniciativa será expandida para todas as fábricas da empresa no país.
- Vetanco: A empresa de saúde animal estabeleceu a meta de que 50% do combustível utilizado para abastecer sua frota seja etanol, monitorando os resultados mensalmente.
Um retrocesso no consumo de etanol
Dados da Datagro mostram que a participação do etanol hidratado no abastecimento da frota flex, que já foi de 41,5% em outubro de 2018, caiu para cerca de 30% atualmente. Em 2023, foram consumidos 18,1 bilhões de litros desse combustível, representando apenas 21% do total utilizado pelos veículos flex — os outros 79% foram gasolina C.
Segundo Plínio Nastari, presidente da Datagro, seria possível chegar a 35% de participação já no curto prazo e a 50% em um cenário ideal, com uma perspectiva mais realista em relação à Anfavea.
Por que a gasolina ainda vence na bomba?
O etanol tem cerca de 30% menos poder energético que a gasolina, o que exige mais litros para a mesma quilometragem. Por isso, só compensa financeiramente quando custa 25% a 30% menos que o concorrente fóssil. Isso em um raciocínio somente econômico e não ambiental e independência do Brasil em relação ao petróleo.
Desinformação e preconceito
Persistem mitos sobre danos mecânicos e baixa durabilidade, já desmentidos por estudos e montadoras. Em alguns casos, motoristas desconhecem que o próprio carro é flex. Essa percepção cultural favorece a escolha pela gasolina.
Consequências ambientais e econômicas
O baixo uso do etanol mantém a necessidade de importação de derivados de petróleo, aumentando a vulnerabilidade energética e a exposição às variações do preço internacional do barril.
Impacto climático
Estudos do ICCT indicam que um carro flex abastecido exclusivamente com etanol hidratado emite 29% a 31% menos gases de efeito estufa no ciclo de vida do que quando abastecido com gasolina. Segundo a Copersucar, um aumento de 10 pontos percentuais no uso do etanol hidratado representaria uma redução de 6 milhões de toneladas de CO₂ por ano.
Políticas e caminhos possíveis
O Brasil já conta com programas estruturantes como RenovaBio, Combustível do Futuro e Mover, mas especialistas defendem medidas adicionais:
- Campanhas de conscientização para combater mitos e mostrar vantagens reais do etanol.
- Política tributária diferenciada para garantir competitividade de preço.
- Investimento em logística para baratear o combustível fora dos estados produtores.
- Aumento gradual da mistura obrigatória de etanol anidro na gasolina, já elevada para até 30% em 2025.
Fenasucro & Agrocana: palco da transição energética
A Fenasucro & Agrocana chega à sua 31ª edição como o maior evento do mundo dedicado exclusivamente à bioenergia, reunindo fabricantes nacionais e internacionais de equipamentos, soluções e tecnologias para biocombustíveis e energia limpa. Realizada pela RX Brasil, com apoio do CEISE Br, a feira oferece mais de 100 horas de conteúdo e se consolida como uma plataforma estratégica de negócios e inovação para a transição energética.
Com um ativo ambiental e econômico nas mãos, o Brasil tem a chance de liderar o mundo na redução de emissões no transporte — mas isso depende, antes de tudo, da escolha de motoristas e políticas que transformem o potencial do etanol em realidade.


